Faça aqui sua pesquisa:

domingo, 31 de agosto de 2008

Sangue Negro: eis um clássico e ninguém notou

(Publicado em março de 2008 pelo NEO - Informativo Eletrônico do Centro Cultural de Laranjeiras)

Morte, brutalidade, mentira, desencontro e decadência moral. Faltam finais felizes na atual temporada de cinema, mas isso não é novo. Todos que gostam ou acham que podem palpitar sobre cinema já o disseram. Alguns se irritam. O que parece passar despercebida é a pretensão de filmes oscarizáveis ao status de “clássicos”. Aqueles que se irritam, não vêem essa virtual qualidade. Dizem simplesmente que 2007 carece de um grande filme. Sangue Negro (There Will Be Blood, EUA) talvez seja o mais brutal dentre eles e também o que se pretende mais clássico.

As 2h39min de duração podem até parecer longas, em alguns momentos. Entretanto, quem consegue ver um verdadeiro clássico sem se cansar, ainda que por um breve instante? É preciso ter fôlego. A falta dele resulta em salas de cinema vazias, que não fazem jus aos méritos do filme. A fotografia alterna os melhores momentos de John Ford, com planos que visam dar dimensão ao oeste intocado, com os de Stanley Kubrick, na seqüência inicial, dentro de uma mina de prata, por exemplo, que muitos consideram nauseante. O roteiro, adaptado do livro Oil!, não contempla mulheres nem mocinhos. O confronto entre o prospector de petróleo Daniel Plainview e o pastor arrivista Eli Sunday (respectivamente interpretados por Daniel Day-Lewis e Paul Dano), por boa parte dessas duas horas, leva a platéia a pensar que está diante de um duelo de gigantes. Só não se compararia, no imaginário, a Luke Skywalker vs. Darth Vader, porque ali, na Califórnia do início de século XX, onde definitivamente não há lugar para os fracos, a briga é de mal contra mal. Ali, não há Davi contra Golias. As atuações que ultrapassam a loucura que se esconde por trás da realidade, em certo momento, não deixarão dúvidas de que o mais forte vence, porque o nanico é só alguém que se considera esperto demais.

Na essência desses dois encontra-se o coração do filme, mais do que no retrato da nascente indústria petrolífera americana, que fez a fortuna de Rockefeller e alimentou a esperança de outros empreendedores, e da consolidação do oeste e da família americana, que bem poderiam estar, todos, num apêndice da “Ética protestante” de Max Weber.

Plainview e Sunday podem não ser bons sujeitos, mas ninguém nega que tenham espírito. Passada uma década em que historiadores mais apegados ao marxismo tentaram provar que é a massa, tão relegada, quem verdadeiramente protagoniza os acontecimentos da história, vem Sangue Negro mostrar que a massa participa, sim, porém amorfa, sem um projeto para si. Como num Paul Johnson que se subverte em vilania, são os dois indivíduos singulares que dão perspectivas à multidão, porque somente eles têm a capacidade para tomar para si o rumo da vida. São sujeitos “viradores” – de que tomo a expressão – que suportam o penar dos anos, à espera da oportunidade que não deixarão escapar para se tornarem grandes. Enquanto o povo de Israel murmurava no deserto, Moisés sabia que, por mais que lhes custassem 40 anos, veriam a Terra prometida.

Fazer referência a Os Dez Mandamentos (1956) de Cecil B. DeMille não é uma licença poética, muito menos bíblica. É possível discorrer sobre Sangue Negro e fazer comparações, em um ou outro detalhe, com Vinhas da Ira (1940) de John Steinbeck, ou Assim Caminha a Humanidade (Giant, 1956) de John Stevens, ou, ainda toda a série de westerns de John Wayne, sem esquecer do Cidadão Kane de Orson Welles, com que o filme de Paul Thomas Anderson compartilha mais afinidades. Não seria o próprio Kane um desses homens de verve que, tal como o prospector de petróleo, segue a vida para cumprir sua missão de superação mesmo consciente de que, ao fim do caminho não encontrará a felicidade? Esta, então, não seria o fim natural de todo homem.

Antes que se pergunte qual é a Rosebud de Plainview, há que se concluir que aquelas referências não estão lá à toa. Elas tornam evidente o caráter clássico de Sangue Negro exatamente no ponto em que ele talvez se afirme como o primeiro grande clássico do cinema na pós-modernidade. A multiplicidade que, na fragmentação referencial, encontra sua unidade deixa-se coroar por uma trilha sonora atonal e dissonante, que por muitas vezes enerva e em outras rouba a cena. Nada mais liquidamente pós-moderno do que a trilha do guitarrista do Radiohead Jonny Greenwood, um mérito a mais.

E Rosebud? Para Plainview, assim como para Kane, essa pode ser a família que nunca se conseguiu. Por um instante, pensa-se que família, para o petroleiro, é só mais um componente dos negócios, mas, depois, se verá que ela poderia ser algo mais. Não somente ela, entretanto. Os filmes escolhidos para concorrer ao Oscar, este ano, compartilham sua Rosebud. Pode ser a divertida busca por um pai, em Juno, a defesa do povo (indivíduo e nação) diante da corporação desumanizada, em Conduta de Risco, ou a decadência moral que ascende diante de sujeitos acostumados com os tempos da ética weberiana. Sem sociologismos, tais filmes exploram uma América que se re-avalia em busca da identidade perdida no tempo em que uma palavra valia mais do que um escrito. Para eles, todavia, talvez não haja aquilo que com Desejo compartilha o título de outro filme, inglês, mas de mesma linha: reparação. Voltar ao passado pode ser uma mudança, promessa que mobiliza, em ano eleitoral.

Isso tudo, para dizer que não se deve correr ao camelô e nem esperar mais tempo para ver Sangue Negro. A imersão, que só se obtém em tela grande, é experiência, às vezes cansativa, que pede um verdadeiro clássico.


Nenhum comentário: