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domingo, 30 de novembro de 2008

"Mera coincidêndia" e "Cidadão Kane": Esses homens voadores e suas guerras maravilhosas













A idéia de manipulação pela mídia não é nova no cinema americano. Ela chegou a ser taxada de “quarto poder” em uma produção homônima (Mad city, no original), de 1997, para a qual o diretor Constantin Costa-Gavras foi buscar inspiração no clássico de Billy Wilder, A Montanha dos sete abutres (Ace in the hole), de 1951. Mais, porém, do que um instrumento de ascensão para um jornalista ambicioso ou descrente do mote “diga a verdade” – que decora a redação do jornal, no filme de Wilder –, o poder midiático pode ser, ele próprio, vítima de manipulação, enquanto meio, quando uma boa estratégia política sabe explorar suas fraquezas e o exige, para fins particulares.

Nada melhor, na ficção e na história que se tem como real, do que uma guerra para mobilizar a atenção da mídia e distrair ou conquistar o eleitorado. Embora a eclosão de um conflito pudesse ajudar Bill Clinton, após os escândalos que envolviam a prática de relações quase sexuais no Salão Oval da Casa Branca, ele preferiu não trilhar o caminho apontado por um colega seu, na ficção Mera coincidência (Wag the dog, EUA, 1997). Ainda que não se possa falar em “coincidência” quando se trata da contemporaneidade do filme em relação ao affair Lewinsky, entretanto, vale recordar uma explicação que o próprio diretor Barry Levinson deu à imprensa, na ocasião: “Este não é um filme sobre um presidente específico e sim sobre a entidade presidencial na era moderna e como 20 anos de intercâmbio entre política, entretenimento e a mídia fizeram com que nos tornássemos mais manipuláveis”.

A manipulação, na tela, desenvolve-se como conseqüência de uma acusação de assédio sexual feita por uma jovem contra um presidente americano – não-identificado – em plena campanha de reeleição, 11 dias antes do pleito. Esse é o prazo que o marqueteiro Conrad Brean (Robert De Niro) e o produtor de cinema Stanley Motss (Dustin Hoffman) têm para criar um fato que desvie a atenção da mídia e, se possível, ainda congregue a nação em torno de seu líder máximo, Comandante em Chefe. Eis que surge uma ameaça de guerra entre Estados Unidos e Albânia.

O filme de Levinson ironiza a ignorância do povo americano em relação ao que se passa além de suas fronteiras. Em certa altura, Brean justifica-se: “Quem, neste país, sabe alguma coisa sobre a Albânia?” Se na ficção ele prova que tem razão, fora dela esse alheamento folclórico parece consistir numa subversão da máxima com que o presidente James Monroe resumiu sua doutrina de política externa, em 1823. Em vez de “a América para os americanos”, pouco mais de um século de consolidação do território e identidades nacionais podem ter resultado em “para os americanos, a América” e nada além dela, exceto para águias e falcões belicosos de Washington.

Em um cenário como esse, não é difícil mobilizar uma população centrada em si, mas ignorante do outro, em torno de um esforço de guerra. Basta convencê-los de que há um fim moralmente legítimo para isso, como a defesa da democracia, dos direitos humanos ou da integridade nacional diante de ameaças incomuns. Em seu American diplomacy, George Kennan (1951) mostra como se desenvolveu o processo de legitimação da hegemonia norte-americana por meio do discurso idealista; ao menos, desde Wilson (1912) e por quase a totalidade do século XX.

Enquanto acontecimentos pontuais embasaram o discurso oficial pela entrada dos EUA na I Guerra Mundial, foi com fundamento na oposição entre democracia e nazismo ou comunismo – ameaças que, apesar de territorialmente distantes, foram levadas, tão somente como ameaças, para dentro de casa – que se deram as participações em conflitos da II Guerra ao Vietnã, com uma passagem pela Coréia. Nada distante, após o 11 de setembro, a ameaça invisível do terrorismo foi corporificada no conceito de “estado terrorista” ou “estado conivente com o terror” ou, simplesmente, “Eixo do Mal”, para justificar ideologicamente as guerras do Governo Walker Bush (filho), com apoio inicialmente unânime da imprensa norte-americana. Se a Clinton foi tardia a exibição de Mera coincidência, não faltou tempo para que a assessoria de marketing de seu sucessor aprendesse com Levinson, Brean e Motss como fabricar uma guerra e convencer a mídia, a multiplicadora, de sua congruência factual ou ideológica. Quem, naquele país, sabia alguma coisa sobre o Afeganistão?

Imagens de mulheres afegãs cobertas com burqa ou de valas de crianças curdas massacradas no norte do Iraque mostraram-se capazes de produzir tanta comoção quanto a de uma albanesa que corre da linha de tiro com seu gatinho branco nos braços. Resgatadas do baú de imagens da primeira Guerra do Golfo (1990), elas se comparam ao resgate de uma suposta canção da década de 1930 no acervo da Biblioteca do Congresso e logo transformada em hit, por Willie Nelson e outras estrelas e listras, com um coral messiânico à “We are the world”. A idéia é a de que não se pode deixar para trás soldados, velhos sapatos e a memória das vítimas do terror.

Pródiga em imagens, a guerra de Herbert Walker Bush (o pai) pode ter marcado na memória como o primeiro confronto transmitido ao vivo para os lares da América, mas, ainda idealmente justificado na manutenção da ordem e soberania em um estado aliado, não teve tempo para garantir a vitória re-eleitoral do primeiro presidente Bush e nem para ser desmentida publicamente – se é que deveria ser desmentida. Jean Baudrillard achou que sim.

Na coletânea de ensaios The Gulf War did not take place (1995), o sociólogo francês questiona o estilo apresentado pela Guerra do Golfo – um combate tão fora dos padrões que teria existido mais como imagens de radar e de coberturas televisivas do que como um enfrentamento real. O que foi considerado real, aliás, para a opinião pública norte-americana, não passaria de “simples imagens do que é real”, travestindo de informação aquilo que se tratava, no fundo, de uma “prostituição da imagem”. Tal é a discussão levada às telas por Barry Levinson e, mesmo pouco antes dele – mas bem depois de Wilder, que focou na manipulação da informação e não da guerra – por Michael Moore, em seu Canadian bacon (EUA, 1995).

Se, no final do século XX, forjar uma guerra com o fim de distrair a opinião pública pode parecer verossímil apenas na ficção, embora forjar seus fundamentos possa ser tão real quanto o provado pelos três governos Bush, deve-se imaginar as possibilidades existentes, no fim do século XIX, para um homem de imaginação. Quase tão próxima do território norte-americano quanto o Canadá (não cabe aqui discutir se as terras canadenses também não seriam norte-americanas, uma vez que se procura aqui simplesmente evitar a adjetivação “estadunidense”) do filme de Moore, a Cuba de 1897 não dispunha de imagens transmitidas em tempo real para desmentir supostas atrocidades espanholas contra a colônia, conforme noticiado pela crescente imprensa marrom (yellow journalism), sobretudo nos jornais de William Randolph Hearst.

Representado no cinema pelo Cidadão Kane de Orson Welles (Citizen Kane, EUA, 1941), Hearst, em sua versão ficcional, manda como resposta ao fotógrafo que, chegando em Cuba, não encontrou fatos que justificassem sua permanência: “Arranje as imagens que eu arranjo a guerra”. O que Hearst publicou no New York Morning Journal e aquilo com que Kane levou à liderança o New York Inquirer levou, de fato, à guerra e à independência cubana, sob a forma de protetorado norte-americano, em 1898, durante o Governo McKinley. Mais do que isso, porém, Hearst e seu “igual”, Kane, com suas ambições políticas – com que, no fundo, se relaciona toda e qualquer atividade de imprensa –, escancaram a confusão existente entre e ilusão e verdade na comunicação de massa. Provaram o poder que há nas asas da imaginação de um político que, mais do que uma idéia na cabeça, tem a imprensa nas mãos.



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