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terça-feira, 9 de setembro de 2008

"Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua"


(Apresentada à PUC-Rio, em junho de 2008)


Por 369 votos a favor e 197 contra, o Parlamento Europeu aprovou, em 18 de junho, a “Diretiva do Retorno”, lei de repatriação que, na prática, criminaliza a imigração ilegal e permite a prisão do imigrante por até 18 meses. Já ao longo da fronteira entre México e Estados Unidos, um muro é erguido para impedir a passagem não autorizada de pessoas do lado subdesenvolvido para o desenvolvido, da periferia para o centro. É também um muro que isola o estado israelense da Faixa de Gaza. Enquanto ali a cerca visa bloquear a entrada de terroristas, lá, embora exista esse mesmo receio, é a entrada de trabalhadores não-qualificados – sócios de um outro contrato social – que deve ser controlada. Em tempos de “guerra ao terror”, a alteridade é sinônima de medo. Neste sentido é que imigrantes apátridas, refugiados, prisioneiros à margem da lei, como os de Guantánamo, e mesmo vítimas do holocausto nazista encontram-se na figura do homo sacer, que serve de título à tetralogia do filósofo italiano Giorgio Agamben.

O homem sacro do direito romano, apresentado no primeiro livro – O poder soberano e a vida nua –, seria aquele sobre que a lei determinava sacer esto: um sujeito banido da convivência cívica, que podia ser morto impunemente por qualquer um, mas não podia ser sacrificado; isto é, sua morte não poderia realizar-se por meio de qualquer rito, seja ele religioso ou jurídico. Assim declarado por lei, é a figura apenada daquele que cometeu crime tão hediondo, tão socialmente inaceitável, que está além de qualquer punição. Nessa figura, segundo Agamben, o caráter sagrado teria sido aplicado a um ser humano, em si, pela primeira vez, mas com um sentido negativo, de maneira a impor ao sujeito um exílio em meio à civilização. O homo sacer, equiparado a propriedade dos deuses ínferos (o autor cita o filologista Károly Kerényi), perde sua condição de humano. Nesse contexto, por mais que conviva em sociedade, não integra classe ou condição de cidadão e não se lhe impõem direitos ou deveres civis, de modo que não poderia haver punição aquele que sequer lhe tirasse o direito à vida.

Ainda que tangencia a figura hindu do pária, o homo sacer diferencia-se por não ser, como na tradução daquele termo, “intocável”. A propósito das considerações do filósofo italiano, pode-se deduzir o risco da perda de identificação humana com um indivíduo ou grupo que, até então, era percebido apenas como inferior. Eis o horror automatizado do nazismo em relação ao povo judeu, que Agamben compara aos refugiados políticos da virada do século XX para o XXI e utiliza para contrapor duas variações, de origem grega, do significante vida: zoé (capacidade biológica de viver) e bíos (capacidade de convivência política). É, pois, o homo sacer, destituído de zoé, que ele relaciona à descrição da “vida nua” dos refugiados feita por Hannah Arendt em As origens do Totalitarismo. Menciona, ainda, que os judeus eram destituídos de sua cidadania alemã antes de serem enviados aos campos de concentração, para obter exemplar do ser humano a quem, ao menos temporariamente, era permitida a vida biológica, mas não a política.

Se a publicação original de O poder soberano e a vida nua, em 1995, permitiu apenas olhar o passado, no prenúncio de um futuro-presente, convém buscar paralelos com, por exemplo, o que o sociólogo Zygmunt Bauman traz, em 2007, no livro Tempos líquidos, a fim de encontrar a vida nua, hoje. Ela segue nas Narreschiffen de Foucault, “lugares sem lugar”, como os campos dos refugiados de Darfur ou do Afeganistão ou da Etiópia, na África, em bases militares da Europa ou ilhas do Pacífico, ao largo da costa australiana, de onde não podem sair por serem inaceitáveis (undecidables) mesmo para voltar à terra de onde vieram. Segue, também, no campo de prisioneiros de Guantánamo e na prisão de Abu-Ghraib, onde os presos estariam fora do alcance de qualquer jurisdição, nacional ou internacional. Todos, alienados dos chamados “Direitos Fundamentais”, “inalienáveis e imprescritíveis”, do Homem, uma vez que, na dita “aldeia global” – com seu livre trânsito de capitais e mercadorias – não se caracterizam enquanto cidadãos de um ou outro Estado de que se possam exigir direitos humanos ou civis. Sobra-lhes o “estado de exceção”.

Embora, em 2005, Agamben venha a escrever contra a legitimação do “estado de exceção” pela política antiterrorismo norte-americana, na segunda parte de Homo sacer, ele já perpassa esse conceito para definir o “poder soberano”, que decidia sobre a vida (zoé) e a morte na Roma Antiga e, no pós-11 de setembro, revela-se capaz de instaurar a violência a serviço dos próprios Direito e Estado. Ao permitir que se mantenha preso indefinidamente o estrangeiro suspeito de atividades que ponham em risco a segurança do país e, com isso, anular na prática o estatuto jurídico do indivíduo que se fundamenta na 4ª Emenda constitucional, o Ato Patriótico dos EUA vale-se de um suposto estado de necessidade para instaurar o estado de exceção, onde a norma geral deixa de ser aplicável enquanto permanece em vigor. Nesse ponto é que o livro vislumbra a manifestação contemporânea do contrato social hobbesiano, em que o soberano conserva um direito natural de “fazer qualquer coisa em relação a qualquer um”. Trata-se de um direito punitivo capaz de produzir um ser inominável e inclassificável, homo hominis lupus que, sem ser totalmente lobo ou totalmente homem, é banido à zona de indistinção.

Emergindo desse “não-lugar”, refugiados e apátridas passam às páginas finais do livro para encarnar a gangrena do corpo biopolítico que observa a transformação do “Estado territorial” em “Estado de população”, onde o “poder soberano” instrumentalmente alterna a proteção da vida com a autorização de seu holocausto por meio de técnicas políticas. Aí, podem-se encontrar as raízes teóricas do italiano, que passam por Carl Schmitt e Foucault. Com eles, Giorgio Agamben categoriza a figura do refugiado enquanto sujeito e objeto do Estado-Nação, que perpetua o sintagma ideológico de “solo e sangue” do nacional-socialismo nos campos que concentram refugiados no Reino Unido ou prisioneiros em Guantánamo, ou, ainda, no discurso eleitoral que marcou a disputa presidencial entre Jacques Chirac e Lionel Jospin – por uma legislação mais severa aos “estrangeiros em nosso meio” – e, mais tarde, elegeu presidente o ministro do Interior, filho de imigrante húngaro, que conteve as agitações de imigrantes nos subúrbios franceses em 2005, Nicolas Sárközy.

Se algo parece fora de lugar entre os mecanismos tradicionais que regulavam a inscrição do cidadão no Estado-Nação, a inserção da vida nua em seu ordenamento permite-se ceder à captura em uma “localização deslocante”, dependente da discricionariedade do “poder soberano”, conclui Agamben. Trata-se de uma separação entre os sentidos humanitário e político do ser humano, que põe em xeque essa sua própria condição e contamina mesmo a ação de organizações humanitárias, cujas campanhas de arrecadação de fundos para refugiados estabelecem uma solidariedade apenas com a vida sacra das vítimas, ou seja, matável e insacrificável. A relevância do texto encontra-se, aqui, no observar o quanto Ruanda repete-se pelo mundo.

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