(Apresentada à PUC-Rio, em março de 2005)
Bestializado, o povo brasileiro assistiu à Proclamação da República como quem não tomasse parte no movimento, meio incrédulo e meio horrorizado pelo menos segundo José Murilo de Carvalho, que toma emprestada a expressão cunhada por Aristides Lobo em 1889, para aplicá-la no título de seu livro, Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi.
Simpatizante da monarquia – ou monarcólogo, como se definiu, certa vez, em entrevista – Murilo de Carvalho talvez até possa ser considerado suspeito para escrever sobre o que ele mesmo chamou, em seu discurso de posse, na Academia Brasileira de Letras, de “tempos conflituosos e intolerantes do início da República”. O autor, contudo, registra um momento em que a capital brasileira fervilhava com transformações e movimentos do Estado pela construção de uma aura de modernidade e urbanidade que se aplicasse ao país sob o novo governo. A república que se instalava pretendia fazê-lo sobre alicerces que sepultassem as instituições e o saudosismo que restavam do Império. Porém, o fez sobre estruturas que não mergulhavam além de meio metro para dentro do solo.
No capítulo 1 do livro, o Rio de Janeiro do início do século XX aparece como microcosmo do restante do país. Um Brasil fragmentado – como permaneceu desde o “descobrimento” até o Governo Vargas e como permanece, ainda, um pouco – encontrava espelho na capital partida, cujos pedaços seriam o centro antigo, com seus ares coloniais, cortiços e populações marginalizadas; arredores elegantes em fase de expansão, como Botafogo e Flamengo; além dos subúrbios e terras (da atual zona portuária) onde se instalaram os imigrantes, sobretudo nordestinos. A heterogeneidade populacional faria com que a cidade fosse tomada por ex-escravos, marinheiros, imigrantes portugueses e de outras origens que restringiriam a 45% o índice de habitantes nascidos na cidade.
Toda essa gente, segundo o acadêmico, amontoava-se em cortiços, ruelas e becos de um centro insalubre e propício às epidemias e à insubordinação popular. Foi, pois, assim, que a maior realização transformadora do Estado republicano viria a “botar a baixo” cortiços, morros e o casario colonial, abrindo avenidas pelo centro do Rio.
É interessante notar que o modelo inspirador para as obras de Pereira Passos era o da remodelação urbana empreendida em Paris, pelo Barão Haussman. Os trabalhos deste, encomendados pelo Imperador Napoleão III, visavam abrir conexões e alargar as passagens, principalmente para dificultar e impedir a ação de manifestantes, tornando-os mais controláveis pelas autoridades estatais.
A idéia de controle da natureza e de destruir o passado para dar lugar ao desenvolvimento são típicas do pensamento modernista que vinha avançando desde a revolução industrial, fomentada pelas teorias de Darwin e Pasteur. Neste último, apoiaram-se os trabalhos de Oswaldo Cruz, que resultariam na revolta da vacina, de 1904. O determinismo étnico, também alimentado por tal pensamento, faria com que as elites brasileiras voltassem as costas às manifestações nacionais de miscigenação racial e os olhos à cultura “pura” européia. O ideal modernista expressava-se pela pureza que se impunha e pelos desenhos retos dos bulevares de Pereira Passos. A linha reta seria aquela que possibilitava o controle e a ordem, a submissão de uma população deliberante e “fora de lugar” diante da autoridade estatal.
Limitando-se se impor pelos traçados urbanísticos, a reforma modernista empreendida pela República não conseguiu lançar suas bases em profundidade no solo carioca porque não era possível mudar a natureza do povo. Aponta Murilo de Carvalho a interpenetração de culturas entre estratificações étnicas e sociais ocorrida no novo espaço urbano. A lei ordenadora, ali, não se impunha para além da discricionariedade de autoridades que se misturavam à massa de ilegalidade. A relação entre autoridade e povo tendia, por parte deste, à mesma dupla de respeito e intimidade que se observara nas audiências que Dom Obá, “Príncipe do Povo”, solicitava ao antigo imperador.
Também o samba Pelo Telefone, na versão original composta por Donga e Mauro de Almeida, em 1916, ilustra tal situação ao contar a história de um “chefe da polícia” que, “pelo telefone”, mandou avisar ao sambista que “na Carioca tem uma roleta para se jogar”. Samba, jogo (duas contravenções do início da república) e uma autoridade conivente representam as transformações populares em cima de uma transformação imposta, que forma um dos ângulos revelados no primeiro capitulo de Os Bestializados.
Bestializado, o povo brasileiro assistiu à Proclamação da República como quem não tomasse parte no movimento, meio incrédulo e meio horrorizado pelo menos segundo José Murilo de Carvalho, que toma emprestada a expressão cunhada por Aristides Lobo em 1889, para aplicá-la no título de seu livro, Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi.
Simpatizante da monarquia – ou monarcólogo, como se definiu, certa vez, em entrevista – Murilo de Carvalho talvez até possa ser considerado suspeito para escrever sobre o que ele mesmo chamou, em seu discurso de posse, na Academia Brasileira de Letras, de “tempos conflituosos e intolerantes do início da República”. O autor, contudo, registra um momento em que a capital brasileira fervilhava com transformações e movimentos do Estado pela construção de uma aura de modernidade e urbanidade que se aplicasse ao país sob o novo governo. A república que se instalava pretendia fazê-lo sobre alicerces que sepultassem as instituições e o saudosismo que restavam do Império. Porém, o fez sobre estruturas que não mergulhavam além de meio metro para dentro do solo.
No capítulo 1 do livro, o Rio de Janeiro do início do século XX aparece como microcosmo do restante do país. Um Brasil fragmentado – como permaneceu desde o “descobrimento” até o Governo Vargas e como permanece, ainda, um pouco – encontrava espelho na capital partida, cujos pedaços seriam o centro antigo, com seus ares coloniais, cortiços e populações marginalizadas; arredores elegantes em fase de expansão, como Botafogo e Flamengo; além dos subúrbios e terras (da atual zona portuária) onde se instalaram os imigrantes, sobretudo nordestinos. A heterogeneidade populacional faria com que a cidade fosse tomada por ex-escravos, marinheiros, imigrantes portugueses e de outras origens que restringiriam a 45% o índice de habitantes nascidos na cidade.
Toda essa gente, segundo o acadêmico, amontoava-se em cortiços, ruelas e becos de um centro insalubre e propício às epidemias e à insubordinação popular. Foi, pois, assim, que a maior realização transformadora do Estado republicano viria a “botar a baixo” cortiços, morros e o casario colonial, abrindo avenidas pelo centro do Rio.
É interessante notar que o modelo inspirador para as obras de Pereira Passos era o da remodelação urbana empreendida em Paris, pelo Barão Haussman. Os trabalhos deste, encomendados pelo Imperador Napoleão III, visavam abrir conexões e alargar as passagens, principalmente para dificultar e impedir a ação de manifestantes, tornando-os mais controláveis pelas autoridades estatais.
A idéia de controle da natureza e de destruir o passado para dar lugar ao desenvolvimento são típicas do pensamento modernista que vinha avançando desde a revolução industrial, fomentada pelas teorias de Darwin e Pasteur. Neste último, apoiaram-se os trabalhos de Oswaldo Cruz, que resultariam na revolta da vacina, de 1904. O determinismo étnico, também alimentado por tal pensamento, faria com que as elites brasileiras voltassem as costas às manifestações nacionais de miscigenação racial e os olhos à cultura “pura” européia. O ideal modernista expressava-se pela pureza que se impunha e pelos desenhos retos dos bulevares de Pereira Passos. A linha reta seria aquela que possibilitava o controle e a ordem, a submissão de uma população deliberante e “fora de lugar” diante da autoridade estatal.
Limitando-se se impor pelos traçados urbanísticos, a reforma modernista empreendida pela República não conseguiu lançar suas bases em profundidade no solo carioca porque não era possível mudar a natureza do povo. Aponta Murilo de Carvalho a interpenetração de culturas entre estratificações étnicas e sociais ocorrida no novo espaço urbano. A lei ordenadora, ali, não se impunha para além da discricionariedade de autoridades que se misturavam à massa de ilegalidade. A relação entre autoridade e povo tendia, por parte deste, à mesma dupla de respeito e intimidade que se observara nas audiências que Dom Obá, “Príncipe do Povo”, solicitava ao antigo imperador.
Também o samba Pelo Telefone, na versão original composta por Donga e Mauro de Almeida, em 1916, ilustra tal situação ao contar a história de um “chefe da polícia” que, “pelo telefone”, mandou avisar ao sambista que “na Carioca tem uma roleta para se jogar”. Samba, jogo (duas contravenções do início da república) e uma autoridade conivente representam as transformações populares em cima de uma transformação imposta, que forma um dos ângulos revelados no primeiro capitulo de Os Bestializados.
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